18 de mar. de 2008

O meulular que me pariu - Giselle Beiguelman

BEIGUELMAN, Giselle. O meulular que me pariu. Trópico. Disponível em: . Acesso em: 2 mar. 2008.

“Beba do veneno, sinta-se detentor de um poder que de fato não tem, mas embriague-se com a idéia de exercê-lo e pisar impiedosamente em alguém.”

“O problema é que os tempos em que se podia localizar tão precisamente os focos de poder e dominação já se tornaram remotos.”

Existem várias (e novas) maneiras de espiar a vida alheia na contemporaneidade, e elas não se limitam a “reality shows”. Vivemos num mundo “1984”, em que somos vigiados o tempo todo e nem nos damos conta. Giselle Beiguelman fala dos “spywares”, programas que entram no seu computador sem que você saiba, geralmente por algum programa que você baixa grátis. Esses programas literalmente “espiam” seu computador, sabendo tudo o que você faz nele. Desse jeito, empresas podem saber seus interesses e por exemplo, mandar e-mails sobre o assunto, ou tentar vender produtos que você gosta e está procurando. Ainda não temos consciência, mas nossos passos são facilmente rastreados, o que existe é uma falsa privacidade.

Aqui vai o texto inteiro, que é pequeno:

O meulular que me pariu
Por Giselle Beiguelman

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Programas de monitoramento de navegação aproximam internautas do mundo sombrio de “1984” de George Orwell

Nessa história de brigas judiciais entre a Globo e o SBT, para mim uma coisa é clara. Quem deveria estar processando todos são os detentores dos direitos autorais do George Orwell (1903 – 1950).

E não é pelo uso indevido e sem créditos do nome de um de seus personagens mais conhecidos, o Big Brother (Grande Irmão), de “1984”, o livro, mas pela promoção de uma compreensão equivocada do que ele seria.

Esse papo de ver alguma semelhança entre os seres que habitam esses planetas do “BBB”, “Casa dos Artistas” e outras traquitanas televisivas com o mundo da obra-prima de George Orwell é um insulto à história da cultura contemporânea.

Se existe alguma semelhança, ela reside entre a fauna que os assiste e os pobres idiotas que viviam na Oceania (o país imaginário de “1984”). Eram todos vítimas de um Estado-mídia que controlava e vigiava a todos, é certo, mas não porque tinha câmeras ocultas, e sim porque os reduzia a entes vivos sem qualquer traço de humanidade.

A obediência não é suficiente, ensinava O’Brien, o inquisidor e líder do Partido, a Winston Smith, o protagonista que começara a desafiar a máquina de controle ao se apaixonar por Julia. É preciso, dizia ele, infringir dor e sofrimento para que o poder se imponha. Só os humilhados são capazes de obedecer cegamente, explicava a Winston, e arrematava: “O poder está em rasgar mentes humanas em pedaços e colocá-las juntas de volta em novas formas escolhidas por você mesmo...”.

O’Brien era o ícone de um sistema totalitário marcado pela ambição por um mundo, como ele mesmo dizia, em que não haveria mais necessidade de ciência, nem distinção entre a beleza e a falta dela, muito menos curiosidade ou alegria, mas onde prevaleceria, em tudo, a intoxicação pelo poder.

“Sempre, a cada momento, haverá o tremor da vitória, a sensação de pisar num inimigo que já está sem esperança. Se você quer uma imagem do futuro, imagine uma bota pisando num rosto humano -para sempre."

Assim falava O’Brien, e é esse tipo de aspiração que aproxima “1984” do universo dos “reality shows”. Já não é possível sequer wapar no seu celular sem ser convidado a votar em quem se quer exterminar.

Elimine um participante, convida-se. Beba do veneno, sinta-se detentor de um poder que de fato não tem, mas embriague-se com a idéia de exercê-lo e pisar impiedosamente em alguém.

Mas não se sinta desenturmado só porque não vê esses programas, nem perde tempo lendo o que se escreve sobre eles. Mais uma vez, não caia nessa armadilha boba de achar que a presença de “1984” se resume a essa pseudovigilância dos “reality shows” e que basta um pouco de senso crítico para resistir a algumas mídias e selecionar as melhores.

Antes fosse assim. O problema é que os tempos em que se podia localizar tão precisamente os focos de poder e dominação já se tornaram remotos.

Em um ensaio publicado na “Progressive”, nos anos 80, Noam Chomsky pontificava sobre os limites da liberdade de pensamento nas democracias ocidentais, investigando os mecanismos pelos quais as instituições políticas podiam prescindir hoje de formas autoritárias e violentas de controle.

Segundo o lingüista norte-americano, a aliança entre poder político e mídia promove, nas chamadas democracias, um tipo de controle das idéias que pode ser exercido sem coerção, apenas valendo-se da construção e circulação de uma novilíngua orwelliana (na Oceania falava-se Newspeak, lembra?) em que se podia até chamar as guerras do Oriente Médio de “processo de paz”...

Ampliando um pouco essas considerações, na era da Internet, a gente acaba se perguntando o que quer dizer “freeware”, e aí a coisa começa a ficar assustadora. Teoricamente quer dizer “programa grátis” e uma das maiores dádivas da Web, porém, na prática, pode ser outra coisa.

Não que seja mentira do tipo anuncia-se que é grátis, mas na hora de usar, você tem que pagar. Isso é estratégia pré-“1984”. O programa de fato é grátis, porém o que o usuário não sabe é que está instalando um pacote de softwares que passam a monitorar sua vidinha on line.

Esse negócio tem um nome. Chama-se “spyware” e perto disso, cookies, spams e câmeras ocultas parecem coisas saídas das histórias da carochinha. Definidos por Damien Cave, da “Salon”, como emblemas da emergência de uma economia de parasitas, essas pragas foram muito debatidas quando se descobriu que o Kazaa, um programa para troca e compartilhamento de arquivos em áudio e vídeo, muito mais legal que o Napster, trazia uma penca deles embutidos.

Esses programas não são encontráveis em uma busca simples no seu computador, mas já existe uma série de outros especializados em caçar spywares (abaixo segue uma listinha deles). O lado mais perverso é que ninguém avisa que vai dar de brinde um kit desses espiões ao inocente que está copiando o programa que escolheu.

É traiçoeiro mesmo, pois tudo é feito sem o seu consentimento ou conhecimento, e são, sem dúvida alguma, na forma de atuar, extremamente invasivos no que diz respeito à privacidade.

Segundo as empresas que fabricam esse tipo de programa, trata-se apenas de um recurso semelhante a uma pesquisa de mercado, pois permite mapear comportamentos e hábitos que são reenviados, pela Internet, aos patrocinadores ou disponibillizadores desses tais programas grátis.

Muitos desses spywares fazem o vasculhamento da sua navegação enviando de 5 em 5 segundos screen shots (imagens do seu monitor) e, os mais sofisticados, podem documentar o momento em que uma aplicação foi iniciada, quem a executou, títulos de todas as janelas abertas e até o que se passa no teclado.

É assim, com essa historinha de spywares, que se resolvem mistérios como o de e-mails estranhos que começam a pulular no seu inbox e, assustadoramente, parecem realmente ter sido escritos por alguém que você conhece.

Como todas as pessoas minimamente normais, tenho um melhor amigo. Somos tão amigos que raramente trocamos e-mails e, dificilmente, conversamos pelo telefone (fixo ou móvel). Quase nunca nos encontramos, mas visito seu site regularmente, pois é a pessoa com o humor mais fino e irônico que conheço.

Ele é tão divertido e surpreendente que quase me tirou o fôlego outro dia. Foi durante o São Paulo Fashion Week. Abri meu e-mail e havia um indicando ter sido escrito por rmiranda, com o seguinte texto na linha de assunto: “rmiranda Fashion News.”

Abri na hora, pois rmiranda é a identidade de e-mail dele e só poderia ser piada sobre o SPFW. O conteúdo era hilário. Anunciava um produto infinitamente melhor e mais barato do que um celular (sou viciada, confesso). O “meulular”.

Quase bati a testa no teclado de tanto rir. Meulular é muito pra cabeça. E, óbvio, o conteúdo tinha link para site que não funcionava e todos os ingredientes de uma pegadinha do Ronas, meu amigo, que autorizou essa divulgação de nossa intimidade.

Liguei para ele, entre risos, e qual não foi nosso susto: não havia sido ele. Ao tentar identificar as propriedades do endereço, para saber quem era o falso rmiranda, aparecia um campo em branco.

Na seqüência, vieram muitos outros e-mails de rmiranda, todos com conteúdos relativos a hábitos e gostos meus (nada que lembre aqueles saudosos spams que anunciavam produtos para todas as giselle@qualquercoisa, como no saudoso passado da antiética explícita).

Acho que deixei de ser cyberhippie nesse dia. O meulular desterrou o que restava da minha inocência on line.

Lembrei, na hora, do escândalo do Kazaa, de meados de 2001, ao qual não tinha mesmo dado muita importância. Fiz buscas, vasculhei meu computador e, sim, tinha spywares instalados.

Nossa, isso está ficando com cara de blog, um negócio que acho bem chato, mas que se tivesse sido inventado antes, faria "1984" parecer menos sombrio. Afinal, a Oceania é uma festa.

link-se
OptOut - Internet Spyware Detection and Removal - http://grc.com/optout.htm
The Noam Chomsky Archive - http://www.zmag.org/chomsky/
Spychecker - http://www.spychecker.com/
The Parasite Economy - http://www.salon.com/tech/feature/2001/08/02/parasite_capital/index.html
George Orwell - http://www.k-1.com/Orwell/
Mambo e o Caos (Site do Ronas) - http://sindicato.etc.br/mambo/
Spycheck

Giselle Beiguelman
É professora do curso de pós-graduação em Comunicação e Semiótica da PUC-SP. Autora de "A República de Hemingway" (Perspectiva), entre outros. Desde 1998 tem um estúdio de criação digital (desvirtual - www.desvirtual.com) onde são desenvolvidos seus projetos, como "O Livro Depois do Livro", "Content=No Cache" e "Wopart". É editora da seção "Novo Mundo", de Trópico.

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